Autor: Leandro Telles.
Fonte: Correio do Povo de 29.07.1973 e Anuário Evangélico de 1978.
Um dos mais dedicados pastores do rebanho evangélico foi Heinrich Eduard Falk, cujo cinquentenário da morte se deu em 15 de julho de 1973.
Falk nasceu em 2 de julho de 1842, em Reval, na Estônia, descendente de alemães que para ali emigraram.
Fez seus primeiros estudos na escola alemã de Reval com o propósito de ingressar com 15 anos na oficina mecânica de seu tio.
Entretanto, seu amor pelos livros levou-o a frequentar o “Seminário Alemão”, onde mais tarde prestaria seus exames para ser mestre-escola.
Por algum tempo esteve como “professor coadjutor” numa grande instituição para órfãos, crianças abandonadas e surdos-mudos.
O espírito reinante no estabelecimento não lhe agradou. Era uma época em que as bastonadas dominavam no sistema educacional da Rússia czarista.
Seguidamente, os escolares presenciavam o espancamento público de criminosos e inocentes, antes de serem enviados para a Sibéria.
Tal fato não era de admirar, pois em Porto Alegre, na mesma década, os escolares se viam forçados a participar como espectadores dos enforcamentos na Praça da Harmonia, conforme já mencionado em trabalho anterior.
Com o decorrer do tempo Heinrich Falk se sentiu chamado a pregar o evangelho para os pagãos, a ser missionário na África e na Ásia.
Abandonou a casa paterna na longínqua Rússia e foi estudar no Seminário de Barmen, em Wuppertal, na Alemanha.
O ingresso no “Missionshaus” se deu em 1864. Sua irmã desposara um funcionário russo e seu irmão era médico militar no exército do czar. A viagem de navio de Riga a Luebeck durou cinco dias.
No Seminário entregou-se com afinco ao estudo e teve seu interesse despertado pela medicina, uma vez que as casas missionárias mantinham um curso de medicina, a fim de que os futuros curas de almas pudessem cuidar do corpo e da alma das ovelhas.
Em 1866 uma epidemia de cólera ceifou centenas de vidas em Barmen, e Falk logo se apresentou como voluntário para cuidar do transporte dos pacientes para os hospitais e dos mortos para os diversos necrotérios da cidade. Esses fatos lhe causaram profunda impressão a ponto de rememorá-los em avançada idade.
A decorrência da epidemia e dos esforços dispendidos em auxiliar os doentes produziram-lhe um enfraquecimento geral a ponto de os médicos lhe aconselharem a desistir de ir para os trópicos, e, sim, procurar o clima mais ameno do sul do Brasil.
Em 1868 Falk foi ordenado e logo depois iniciou sua viagem para o Brasil, chegando em São Leopoldo em 21 de dezembro de 1868. A viagem foi feita num veleiro e durou cem dias, de Bremen a Rio Grande.
Antes de partir, Falk Noivara com Johanna Friederike Hahl, nascida em 6 de setembro de 1845, em Muenchingen (Wuertenberg), com quem casou em 31 de janeiro de 1871, em Santa Cruz, vivendo 37 anos de abençoado matrimônio, com 9 filhos, sendo um deles o conhecido clínico Dr. Frederico Falk, médico de renome em Porto Alegre.
A primeira paróquia de Falk foi Santo Ângelo, atual Agudo. Sua vida pastoral é narrada em cartas enviadas à família Hahl na Alemanha.
Para se aquilatar as condições em que vivia o casal vale a pena transcrever o trecho da carta enviada em 12 de março de 1871 por Johanna à sua irmã Maria: “Imagina um local que até bem pouco tempo era floresta virgem, aplainado sofrivelmente, sendo a moradia e a igreja construídas ao lado do galinheiro.
A casa ainda não se encontra terminada; provisoriamente moramos na varanda da igreja; são três peças: numa dormem as crianças, noutra nós mesmos, e a do meio é a sala, onde a porta dá logo para o pátio.
O quarto de estudos de meu marido é a floresta virgem, onde ele se acomoda sobre uma raiz de árvore, sem ser perturbado.
Só os macacos o contemplam e talvez se aborreçam por não poderem roubar despreocupadamente o nosso milho. No templo meu marido também dá aulas, e já que a parede não chega até o teto, posso ouvir tudo.
Hoje ele foi muito severo e distribuiu muitos bolos com a palmatória”. A cozinha era separada da casa e em dias de chuva só atingível com tamancos, tão grande era o lodaçal.
Não bastassem essas precárias instalações, ainda aumentavam os dissabores do pastor face ao comportamento dos membros da comunidade.
É preciso rememorar que a maioria dos imigrantes eram servos de gleba na Alemanha, que trabalhavam de sol a sol e cujo ganho, na sua maior parte, ia para o bolso do proprietário das terras.
Aqui chegando, desfrutavam de liberdade e se excediam, com o que não concordava o pastor, afirmando que eles “se comportavam pior do que os macacos”, acrescentando ainda que, apesar de ter viajado muito, nunca encontrara gente de tal espécie.
Chegaram a invadir a igreja durante a prédica. Isso não impedia que o zelosa cura de almas cumprisse com o seu dever: “Em qualquer aperto eles correm para mim, e eu, como sou um russo amável, faço tudo o que posso, cavalgo muitas horas para socorrer um paciente em estado grave por intermédio de uma sangria, procurando auxiliá-lo ou aliviá-lo.
Contudo, em troca, só recebo impropérios e difamações.
Em muitos domingos, à noite, o pastor chegava ensopado em casa, depois de muitas horas de cavalgada, “muede wie ein Hund” (cansado como um cachorro) e ainda tinha de preparar a sua comida, pois sua noiva não chegara da Alemanha.
E quando esta chegou, escreveria aos parentes na Alemanha: “Agrada-me muito estar no Brasil a ponto de não perceber a grande distância que nos separa”.
O casal se sentia chamado a uma missão: a de pregar o evangelho, e isso os fazia amar a nova pátria e os membros de rebanho, não obstante as adversidades.
Nessa atitude dos Falk se vislumbra, igualmente, o idealismo e a tenacidade do imigrante germânico.
A situação na comunidade era insustentável. Além da péssima moradia, “onde o vento quase nos arrancava do leito e onde chovia a cântaros dentro de casa” atrasavam ainda o pagamento dos vencimentos do pastor.
Isso tudo o fez transferir-se para Santa Cruz, onde vamos encontrá-lo em 1874. Dirige, então, um pedido aos parentes para que fizessem uma coleta a fim de que ele pudesse comprar sinos e outros objetos para a igreja de S. Cruz.
Pela Constituição Imperial de 1824 era proibido aos templos evangélicos possuírem quaisquer sinais exteriores de casa de oração, como sinos, torres etc.
Apesar disso, muitas comunidades já os possuíam sem serem molestadas, e o pastor desejava aproveitar essa boa vontade do governo, no que foi atendido pelos parentes com uma boa importância em dinheiro.
Falk permaneceu até 1877 em S. Cruz e depois passou a atender a comunidade de Ferraz. A cavalgada de S. Cruz a Ferraz durava cinco horas.
Os Falk se encontravam bem instalados, numa casa boa, rodeado de um belo pomar e parreiras. Delas os Falk extraiam 400 a 500 garrafas de vinho, anualmente, que vem comprovar que os imigrantes alemães no Rio Grande fabricavam vinho antes dos italianos.
Ferraz era uma “pequena Alemanha”: a língua, os costumes, tudo lembrava a pátria distante. A igreja era bem frequentada.
Em Ferraz, Falk pôs muito em prática seus conhecimentos de medicina, sendo chamado inclusive para atender doentes nas “picadas” vizinhas.
Transformou-se também numa espécie de “escriba”: qualquer documento, procuração, inclusive os epitáfios tumulares eram originários da sua pena.
Como professor também obtinha bons êxitos, embora as aulas só fossem dadas três vezes por semana. Como pregador despertava a atenção dos ouvintes pelas estórias, que intercalava nas prédicas.
Detestava quando não lhe ouviam: “Sabem qual foi o comportamento do Kaiser Wilhelm II no Monte das Oliveiras? Ele não procedeu como o jovem no último banco da igreja, que a toda hora torce e contempla o seu bigode.
O Imperador caiu de joelhos...” Ora, uma observação desse teor em meio ao sermão obrigava, certamente, os ouvintes a manterem seus olhares dirigidos para o púlpito...
O pagamento dos vencimentos pastorais era interessante. Recebia 800 mil réis de três comunidades e além disso meio saco de milho de cada membro, perfazendo um total de 50 sacos.
Entretanto, essa “suplementação em milho” oscilava, pois só quando a colheita era boa pagavam pontualmente.
Caso subissem os preços do milho, os membros, frequentemente, só cumpriam com a sua obrigação no ano seguinte.
A manutenção e reparos na casa pastoral, no potreiro e nas cercas, corriam por conta dos membros. Alguém, então, lembrou de dividir a manutenção das cercas.
O resultado foi interessante: Os membros mais ativos construíam o seu trecho com madeira-de-lei, outros apenas remendavam a cerca e a duração não era longa.
Os mais espertos, entretanto, plantavam espinhos. Até que estes formassem uma sebe, o gado tinha passagem livre nesses trechos. O resultado era uma “verdadeira salada de frutas” desempenhando o papel de muro...
Na carta dirigida ao cunhado, procurando consolá-lo pela morte da esposa, vê-se o sentimento que animava a Falk no curato de almas: “Como pregador é que se aprende a conhecer o quanto a vida tem de sério.
Goethe tinha razão ao afirmar: quem nunca comeu o seu pão com lágrimas, quem nunca em noites de aflição, chorando se sentou ao leito – esse não vos conhece, potestades celestiais!
Só nas horas de angústia, quando perdemos a alegria por tudo e por todos, é que as forças celestiais mais se aproximam de nós, a ponto de não dizermos com Davi somente: por toda a noite perdurou o choro, mas acrescentarmos, na fé, uma segunda frase: mas pela manhã veio a alegria”.
Em 1886 o casal se transfere para Vila Tereza. Ali adquiriram um pedaço de terra e tencionavam construir uma casa. Mas em seguida Falk assumiu a paróquia de Conventos, perto de Lageado, onde permaneceria nove anos.
É interessante observar o pensamento da “Frau Pfarrer” sobre o Brasil: “Só quem tem vontade e amor pelo trabalho consegue prosperar aqui, pois aqui, como eu já escrevi muitas vezes, existem poucos empregados.
Isso significa que o marido, mulher e filhos, mesmo quando bem pequenos, devem trabalhar, economizar e serem solidários, principalmente nos primeiros anos”. Não é um espelho da vida dos imigrantes nos primeiros anos de lutas?
O governo brasileiro, conforme se depreende das cartas, os tratava bem, fazendo-os vir em vapores, e não mais em veleiros.
E depois da alegria da chegada do filho Ernesto, que passara cinco anos na Alemanha, o sentimento do imigrante na nova pátria “Sim, a gente não esquece a pátria tão facilmente e, frequentemente, me encontro nela em sonhos.
Mas na verdade isso nunca acontecerá, pois nunca mais voltaremos. Vamos morrer no Brasil”.
A revolução de 1893 trouxe muita inquietação na colônia. Aliás segundo Johanna, os tumultos principiaram “depois que o caro Imperador foi derrubado do trono”, ou seja, com a República.
Durante 14 dias Lajeado esteve sob o domínio de um caudilho de nome “Palmeira”, um “Halsabschneider” (degolador), que praticou vários atos de vandalismo, que mandou degolar vários colonos adeptos do Partido Castilhista.
O rio estava coalhado de cadáveres. Lajeado encontrava-se isolado, já que o rio estava bloqueado. Todos foram obrigados a usar uma fita encarnada no chapéu, a cor dos revolucionários.
Em Teutônia assaltaram a casa do pastor e lhe levaram todos os seus haveres. Os revolucionários penetravam nas residências e as despojavam, carregando o que encontravam de valor.
Por muito tempo Falk foi o único pastor no município de Lajeado, transferindo-se depois para a Paróquia de Feliz, onde permaneceu 19 anos, inclusive lá residindo após sua aposentadoria.
Em 3 de agosto de 1906 Johanna faleceria e o pastor experimentaria a dor da solidão em companhia das filhas.
Em 16 de agosto de 1918 Falk festejou seu jubileu de ouro no ministério pastoral.
Era até aquela data o único pastor evangélico que durante 50 anos se mantivera em atividade sem qualquer interrupção.
Os últimos anos de sua vida passou-os em companhia de sua filha Johanna, casada com o professor Klingbeil.
Em 15 de julho de 1523, Falk faleceu no Alto Feliz, sendo ali enterrado.
No seu túmulo e da esposa o melhor epitáfio seria apenas este: “Eles cumpriram com o seu dever”.
Uma muda transplantada da velha Germânia para o solo do Rio Grande, abnegados servidores do cristianismo do amor ao próximo, segundo os ditames da Reforma Luterana.