Autor: Dr. Frederico Guilherme Falk
Tradução: Rodolfo Falk
Fonte: Anuário das Comunidades Evangélicas no Brasil de 1924.
A 15 de julho de 1923 faleceu em Alto Feliz (Estado do Rio Grande do Sul, Brasil), com a idade de 81 anos, o Pastor Heinrich Eduard Falk, depois de meio século de uma abençoada atividade como pastor do culto evangélico e de professor.
Pela sua grande filantropia, seu pronunciado entendimento do dever e muitas outras elevadas qualidades do seu caráter, bem merece ele que a posteridade venha a saber de certos pormenores de sua vida, mormente os seus muitos velhos amigos e admiradores.
Sempre desejávamos e esperávamos que o nosso pai relatasse ele mesmo a sua vida tão multilateral, para o bem dos seus próximos, mas sempre nos fazia esperar pela época de sua esperada aposentadoria.
Quando afinal entrou em gozo desta aposentadoria, já com a idade de 76 anos, naturalmente que já era tarde demais para isso.
Contudo ainda gostava de contar certas passagens de sua vida, mas como soe acontecer por parte de pessoas idosas, ocupavam as recordações mais antigas sempre o proscênio de sua imaginação.
Assim, não mais lhe teria sido possível compilar um relato coerente.
Também não desejávamos estafá-lo com semelhante trabalho, e por este motivo, nos alegrávamos em vê-lo aproveitar o seu confortável e tão merecido descanso.
Vou tentar, como seu filho mais velho, dar um pequeno relato de sua vida. Nisto tenho que confiar-me completamente na minha memória.
Tenho principalmente em mente certas passagens dos primeiros anos de sua atividade, da época em que as chamadas “colônias alemãs” (núcleos de colonos alemães ou de origem alemã) encontravam-se em formação, com um desenvolvimento ainda muito precário das comunidades e escolas.
Nascido em Reval (Estônia), o nosso pai frequentou primeiro a escola alemã local, para ingressar aos 15 anos na oficina mecânica de um tio.
Mas já depois de um ano sentiu saudades dos livros e matriculou-se no seminário alemão, onde mais tarde prestou os seus exames de professor.
Em seguida esteve ativo, durante algum tempo, em um grande estabelecimento de educação para órfãos, abandonados e surdo-mudos. Mas o critério que lá predominava não condizia com o seu caráter.
Efetivamente, naquela época, eram ainda a vara e outros castigos corporais que regiam as escolas e os educandários, principalmente em um país como a Rússia, em que se julgava não se poder viver sem o chicote.
Quantas vezes nos contou o nosso pai que as escolas tinham que assistir os açoitamentos públicos (espancamento por açoites) dos criminosos e quiçá também de uns tantos inocentes, antes que estes fossem enviados para a Sibéria.
Aos poucos foi tomando forma o seu plano de tornar-se missionário. Dos seus escassos apontamentos podemo-nos inteirar do grande júbilo que lhe causou o assentimento da Missão de Barmen (Alemanha) em aceitá-lo.
Deixou, pois, a terra natal e a casa paterna, para preparar-se para a profissão escolhida em Barmen, na célebre “Casa das Missões”.
É de notar, porém, que ainda um outro motivo o induziu a deixar a sua terra natal. Ele, cujos sentimentos sempre foram de alemão, teve que assistir ao cada vez mais crescente predomínio russo nas províncias bálticas; procuravam os russos reprimir o mais possível qualquer sentimento alemão e nisto estavam sendo bem sucedidos.
A sua própria irmão contraíra núpcias com um funcionário público russo e o seu único irmão tornara-se médico militar russo.
(Nota do tradutor: As antigas províncias russas Estônia, Letônia e Lituânia, chamadas também províncias do báltico, pertenciam antigamente à esfera cultural da Alemanha, segundo um tratado feito entre Pedro o Grande e a nobreza da Alemanha.
Tornaram-se países independentes depois da primeira guerra mundial, em 1918, mas foram novamente anexadas pela Rússia soviética durante a segunda guerra mundial.
Constatei, posteriormente, que o meu avô tinha duas irmãs e um irmão. A que se casou com um funcionário russo chamava-se Luise. O nome da segunda irmã era Otilie.
O seu irmão faleceu em consequência de uma infecção do braço, provocado por um ferimento que ele mesmo se produziu durante uma intervenção cirúrgica em um paciente seu.)
Bem disposto, mudou-se ele no ano de 1864 para Barmen. Dos seus apontamentos deduzimos que a sua viagem de vapor de Riga para Luebeck (porto da Alemanha) levou 5 dias.
Na “Casa das Missões” dedicou-se com grande afinco aos seus estudos, demonstrando um interesse todo especial pela medicina.
É de conhecimento de todos que na “Casa das Missões” os alunos tem que fazer um curso de medicina, o qual, os possibilita, mais tarde, nos seus futuros campos de trabalho socorrer o próximo em todas as situações de necessidade.
Quando em 1866 grassava uma epidemia de cólera em Barmen, o jovem discípulo-missionário imediatamente apresentou-se para o serviço de assistência aos doentes.
Até a sua avançada idade costumava narrar os horrores daquela triste época.
O seu serviço se constituiu principalmente do transporte dos doentes para os lazarotos e dos mortos até o limiar de suas casas, de onde eram conduzidos para os necrotérios improvisados.
Interessante que naquela época já se usava o cloruro de cal como droga desinfetante, enquanto que ainda não se desconfiava de uma transmissão da doença pela água potável.
As emanações do cloruro seguidamente provocavam fortes acessos de tosse nos que lidavam com o mesmo. Em meu pai estas influências do cloruro um belo dia chegaram a provocar pequenas perdas de sangue pelos pulmões.
Aliás, este serviço desacostumado e estafante, muito afetou a sua saúde geral, o que levou os médicos a lhe desaconselhar a sua transferência para os trópicos, recomendando o clima mais ameno do sul do Brasil.
Um tanto contrariado, meu pai finalmente concordou com esta ideia e deu aos seus estudos um rumo um pouco diferente.
Ele se esforçou, principalmente, para tornar-se um bom orador, no que a sua pronúncia clara e a sua voz forte muito o auxiliaram.
Mais tarde, em ocasiões especiais, muitas vezes foi escolhido como orador oficial, como por exemplo em inaugurações de novas igrejas, na comemoração do 4º centenário de Lutero em Santa Cruz e na festa sinodal em São Leopoldo no ano de 1886.
Em 16 de agosto ele foi ordenado pastor evangélico e logo em seguida iniciou sua viagem ao Brasil.
Pouco antes havia contratado casamento com a nossa mãe Johanna, nascida Hahl, de Wuertenberg (Alemanha), que lhe seguiu ao Brasil dois anos após e foi a sua fiel companheira, em todas as situações da vida, durante 37 anos. (Casaram-se em 31 de janeiro de 1871 em Santa Cruz).
A viagem foi feita em um veleiro e durou, de Bremen (Alemanha) a Rio Grande, exatamente 100 dias, chegando ele a São Leopoldo em 21 de dezembro de 1868.
A sua primeira comunidade, onde serviu durante 2 anos e meio, foi a de Santo Ângelo, na qual, foi introduzido em 20 de janeiro de 1869.
O ano de 1871 ele o passou em São Leopoldo, onde teve que substituir o pastor Wegel que se encontrava seriamente doente. Até 1890 esteve então exercendo o sacerdócio no município de Santa Cruz, até 1877 na própria vila de Santa Cruz, depois em Ferraz e finalmente em Vila Tereza.
De lá foi transferido para Conventos, no município de Lageado, comunidade esta que, entretanto, 9 anos depois trocou pela de Feliz (município de São Sebastião de Caí), por não mais poder enfrentar aquele trabalho estafante. Ele era, naquela época, o único pastor evangélico em todo o município de Lageado.
Algumas das suas comunidades ficavam tão distantes que ele era obrigado a iniciar as suas viagens já aos sábados, para no dia seguinte poder comparecer, pontualmente, na hora marcada para o culto religioso.
Em Feliz, onde foi introduzido a 3 de setembro de 1899, com as suas poucas filiais menos distantes (Alto Feliz e “Tabakstal”), encontrou uma atividade mais cômoda, assim que ainda pode dirigir esta comunidade por mais 19 anos.
Teve sempre um grande fraco pelos moradores de Feliz, assim que não queria deixar aquela região por preço algum, mesmo depois de aposentado.
O que ainda o prendia sobremaneira, era a sepultura de nossa boa mãe.
A 16 de agosto de 1918 pode ele festejar o seu jubileu de ouro. Foi, até então, o único pastor evangélico no estado do Rio Grande do Sul que esteve no seu ofício initerruptamente durante 50 anos.
No mesmo dia ele entrou no gozo de sua aposentadoria tão merecida.
Para caracterizar a sua grande modéstia devo citar o fato, de que já poucos dias antes transferiu a sua residência para Alto Feliz, pedindo aos muitos congratulantes de fora que já haviam anunciado a sua visita, que se abstivessem de todo e qualquer festejo do seu jubileu.
Os últimos 5 anos de sua vida ele os passou em casa do seu genro, professor Heinrich Klingbeil, onde sob os dedicados cuidados de sua filha mais moça Johanna teve uma existência contemplativa e satisfeita.
Desde que tinha os seus livros, os seus morros e suficiente material para fumar, seus mais ardentes desejos estavam satisfeitos; principalmente era um mestre no fumar.
Já há anos haviam-se apresentado os padecimentos oriundos da velhice, mas o seu progresso foi muito lento.
Nos últimos anos de sua atividade, por exemplo, causava-lhe certa dificuldade montar a cavalo, já que era seguidamente acometido por câimbras.
Uma vez, ao anoitecer, quando regressava de uma de suas filiais, onde fora preparar crianças para a confirmação (comunhão) teve um ataque excepcionalmente forte de câimbra que o obrigou a apear e sentar-se à beira da estrada.
Há muito que já tinha passado a hora em que costumava regressar, o que preocupou a minha irmã e o meu cunhado, que então resolveu montar a cavalo e ir ao seu encontro.
Encontrou o meu idoso pai numa região solitária, onde fora vencido pelo cansaço, dormindo despreocupadamente na relva, enquanto que o seu fiel cavalo pastava tranquilamente ao seu lado.
Até o seu 40º ano de vida o nosso pai teve um aspecto meio doentio, porém, suportava perfeitamente as fainas mais penosas. Mais tarde adquiriu aspectos de um homem forte e sadio, jamais tendo sofrido de doenças, excetuando-se um ou outro mal-estar passageiro.
Andar a cavalo era para ele quase uma necessidade para manter a sua boa disposição.
Quando não se sentia muito bem, por um ou outro motivo, resolvia dar um passeio a cavalo e geralmente voltava para casa bem disposto e com novo ânimo.
E que atividade pesada que muitas vezes lhe era reservada! Assim podia acontecer que, recém de regresso de Rio Pardinho, já tinha que montar um outro cavalo para viajar a Sitio ou Dona Josefa a fim de assistir a um enterro, muitas vezes também para Rio Pardinho ou Sinimbu, como substituto de seu colega adoentado Schmidt.
Hoje em dia é difícil formar-se uma ideia de como se apresentavam as estradas naquela época.
Como exemplo, pode valer a estrada para Rio Pardinho, para onde, por causa das dúvidas, sempre se lhe proporcionava um acompanhamento na pessoa de um ex-marinheiro.
Quantos rios o nosso pai teve que atravessar em canoa durante a época das chuvas, segurando o cavalo pelas rédeas para que lhe seguisse nadando.
Quando entrou o inverno de 1923 o meu pai teve que ficar acamado e as suas forças declinaram então visivelmente, vindo a expirar a 15 de julho, depois que os últimos dias ainda terem-lhe trazido muito sofrimento.
Suportou os seus padecimentos com a maior resignação. Mostrou-se sempre extremamente grato por toda a visita recebida durante a sua enfermidade.
No dia 17 de julho foi dado à sepultura em Feliz, ao lado de nossa querida mãe que já lhe havia antecedido há 17 anos. A morte de nossa mãe foi o mais rude golpe que jamais sofrera em sua vida.
Deveras comovente foi o modo como inscreveu a sua morte no registro da Comunidade de Feliz.
O numeroso séquito fúnebre que lhe prestou as últimas homenagens foi a melhor prova do respeito e da veneração que lhe eram tributados pelos seus próximos, tanto protestantes como católicos.
Agora tentarei relatar, destacadamente, alguns episódios da sua vida, cuja memória tenho guardado mais nitidamente; espero que os mesmos evoquem reminiscências agradáveis em um ou outro leitor, e pretendo ao mesmo tempo mostrar que aqui no Brasil um pastor não vive em um “mar de rosas”.
Santa Cruz, naquela época, tinha ainda o nome de Faxinal. Em 1870 não passava de uma pequena aldeia que pertencia ao município de Rio Pardo.
A comunidade por si só já era bastante extensa. Era ainda aumentada por algumas vilas vizinhas que também tinham que ser servidas, como Venâncio Aires (então Faxinal dos Tamancos) e Rio Pardo.
Não deixava de haver na comunidade certo interesse pela igreja e pela escola, já pelo motivo dos seus membros serem constituídos quase que exclusivamente de imigrados; não obstante a situação não era tão boa como seria desejável.
Assim, seguidamente, se originavam divergência de opinião e discórdia, principalmente, quanto à relação entre igreja e escola.
Aos domingos Santa Cruz era sempre dominada por uma vida buliçosa, conquanto reunia as pessoas que das redondezas vinham assistir aos cultos religiosos.
Como sempre alguns moradores das picadas faziam parte do conselho de direção da comunidade evangélica, cujas sessões eram marcadas para antes ou depois do culto, terminando as suas discussões muitas vezes em disputa acirrada.
Apesar de que naquela época eu só tinha 5 anos, ainda me recordo muito bem de um episódio.
Na sala de nossa casa havia uma conferência bastante importante e, como estava se aproximando a hora do culto, todos os membro do conselho já estavam de pé. Um membro da diretoria, entretanto, de profissão carreteiro, escolheu a mesa da sala como assento.
Apesar do “velho” sr. Gressler, pai do sr. Oscar Gressler, tê-lo puxado duas vezes do seu trono, tentou sentar-se pela terceira vez na mesa. A esta altura esgotou-se a paciência do meu pai.
Com gesto enérgico pos-lhe uma cadeira à sua frente, com a observação: “Se tem absoluta necessidade de sempre andar sentado ao menos sente-se numa cadeira!”
Devido as contendas por causa da escola e às expectativas sedutoras de encontrar na colônia condições de vida menos caras, o meu pai deixou-se induzir a assumir no ano de 1877 a comunidade de Ferraz com as filiais de Vila Tereza, Rio Pardense e Dona Josefa. Cometeu decididamente um erro.
Pois mesmo que encontrara em Santa Cruz uma certa oposição, exatamente pela questão da escola, este caso não era tão sério assim que cedo ou tarde não pudesse ficar conciliado. Que ele tinha ao seu lado a maior parte dos membros da comunidade prova o grande acompanhamento que lhe deram até a Vila Tereza, sendo que muitos o acompanharam ainda além, até Ferraz.
Ferraz, naquela época, era uma colônia relativamente nova, cujos habitantes tinham terminado de pagar as suas dívidas oriundas de suas compras de terras e tinham começado a construir para si moradias maiores e mais bonitas. Já existia, portanto, uma certa prosperidade.
Eram mais ou menos 100 famílias, na maioria Pomeranos (parte da Alemanha). Os restantes eram, principalmente, Renanos (também da Alemanha).
O antecessor do meu pai, sr. Pastor Haetinger, já lá tinha tido as suas experiências pouco agradáveis quando tratara da aquisição de um crucifixo para a igreja, com forte oposição dos Renanos, como adeptos da igreja reformada.
Depois de um longo período de disputas, os reformados resolveram separar-se e nomearam um “pseudo”-pastor. Só depois de muitos anos é que, paulatinamente, desapareceu esta dissenção dentro da comunidade.
Quanto ao mais constituía Ferraz o lugar ideal em que o nosso pai teve oportunidade de desenvolver plenamente todas as suas aptidões.
Prestava o seu auxílio em todas as necessidades. Não se limitou aos seus cargos de pastor e professor, mas ainda teve que servir a comunidade com os seus conhecimentos de medicina. Devido a completa falta de médicos (os profissionais mais próximos eram os médicos militares de Rio Pardo), seguidamente empreendeu longas viagens até Santa Cruz, Picada Velha, Rio Pardinho, etc. Mais tarde, quando já havia médicos em toda parte, abriu mão desta prática.
Ele foi ainda o “escrivão universal” para quase toda picada, cujos habitantes ainda estavam ligados por fortes laços com a antiga pátria.
Nenhuma procuração e nenhum documento foi lavrado que não tivesse sido por ele redigido e escrito. Até mesmo as inscrições nas placas das grades de sepulturas eram por ele executadas.
A remuneração de um pastor era naquela época uma cousa bem singular.
Além de um ordenado fixo de mais ou menos oitocentos mil réis (de três comunidades) por ano, percebia ele os emolumentos de pastor (rendimentos do pé do altar) e um meio saco de milho de cada membro da comunidade principal, portanto, mais ou menos 50 sacos, tudo isso por ano.
O fornecimento do milho tinha, entretanto, o seu “que”: quando a safra era boa e consequentemente o produto barato, não sabia muitas vezes o que fazer com tanta abundância de milho.
Em compensação, quando o preço era alto o seu fornecimento deixava muito a desejar, conquanto muitas deixavam o pagamento de sua dívida para o ano seguinte.
O Pastor, portanto, via-se obrigado a comprar milho por preço elevado.
Restrições especiais também se faziam quanto ao ensino escolar.
Como os colonos pensavam não poder dispensar os seus filhos do trabalho da roça, somente podia lecionar durante três dias da semana.
É de se admirar que mesmo assim se obtinha um resultado mais ou menos satisfatório. Este sistema, naturalmente, exigia um trabalho bastante intensivo por parte do professor, principalmente, porque as crianças frequentavam a escola apenas durante três anos.
A taxa escolar importava em quinhentos réis. Como pagamento suplementar os pais forneciam a lenha, a qual, era obtida da seguinte maneira: Todos os anos era derrubado um pedaço de mato que existia nas terras pertencentes à comunidade e para este serviço toda a família tinha que ceder dois homens durante dois dias.
Desta maneira sempre existia terra nova para o plantio e lenha à vontade.
Quando faltava lenha picada, destacavam-se pela ordem dois pais que durante um dia serravam e rachavam a lenha. O transporte da lenha cortada até a nossa casa era feito por todos os alunos durante os recreios.
Certos reparos nas casas e os consertos nas cercas do potreiro, assim como também a limpeza do potreiro, eram feitos com o auxilio de toda a comunidade.
Mais tarde surgiu a ideia de se atribuir a cada membro da comunidade um determinado trecho da cerca por cuja conservação ficava responsável.
O resultado foi muito interessante.
Enquanto os pais zelosos construíam em seu trecho uma cerca impecável com a melhor madeira de lei, outros havia que se limitavam a um verdadeiro trabalho “remendão” cujos trechos, portanto, não tinham durabilidade nenhuma.
Outros ainda, mais espertos, plantavam maricas.
Mas até que estes maricas crescessem e formassem uma cerca viva, o gado utilizava-se destes lugares como passagem franca para sair e entrar.
Este conjunto, naturalmente, fornecia um aspecto bastante pitoresco.
Como se vê, era a remuneração de um pastor composta de uma série de contribuições diversas, certamente um reflexo dos costumes hereditários da antiga pátria.
Apesar da remuneração insuficiente que percebia, o nosso pai dedicou-se com todas as suas forças ao seu serviço em prol da comunidade e da humanidade em geral.
De três em três semanas até tinha que oficiar o culto religioso em duas comunidades no mesmo dia, sendo que à tarde alternadamente em Rio Pardense e Dona Josefa.
Para chegar a Rio Pardense necessitava de 3 horas a cavalo.
O caminho para Dona Josefa era feito a pé em uma hora, porque o atalho mais curto para aquele lugarejo passava pelo mato denso, impróprio para andar a cavalo.
Quando estava em casa, aos domingos de tarde, oficiava ainda um culto religioso para crianças.
Nos primeiros anos, durante a festa de natal, armava-se uma árvore de natal na igreja e lá mesmo se fazia uma distribuição de presentes; mais tarde isto já nem era mais possível devido ao muito tempo dispendido com as viagens a cavalo.
Como em Ferraz não existiam pinheiros, aproveitava-se um palmito que era mais fácil de enfeitar e oferecia um lindo aspecto.
Os enfeites para a árvore de natal eram na maioria feitos por nós mesmos, com papel de cor lustroso e nozes douradas.
Até mesmo as velas nós as fundíamos com cera.
O cheiro que desprendiam estas velas de cera ao queimar, misturado com o palmito, principalmente quando já estava murchando, era extremamente agradável.
Para a festa de confirmação (comunhão), a igreja sempre era bem enfeitada; às cabeceiras de cada segundo banco colocava-se um palmito.
Destarte os frequentadores ficavam sentados debaixo de palmeiras.
Recordo-me do seguinte episódio que não posso deixar de contar: Em muitas comunidades costumava-se pendurar uma coroa de flores debaixo do sobrecéu do púlpito.
Durante a prédica, portanto, ficava ela suspensa acima da cabeça do pastor.
Um belo dia, em certa comunidade, quando um “pseudo-pastor” celebrava a confirmação, a coroa começou a balançar por cima de sua cabeça movida pela correnteza do ar até que o barbante rompeu e a cabeça do pastor ficou enterrada dentro da coroa.
Uma cousa não deve ser esquecida, por constituir um traço bem característico de meu pai: o seu grande talento como narrador.
Já como crianças estimávamos esta sua propriedade. Quando aos domingos, por exemplo, ele nos perguntava: “Querem passear ou preferem que eu vos conto histórias?”, todos nós escolhíamos o último.
Sentava-se, então, à mesa, com um legítimo charuto havana de Santa Cruz na boca (quadrado, conhecido por “charuto do Padre Weiss”, o milheiro por 10 mil réis) e então lá vinham as histórias, durante horas, perante um público muito agradecido.
Mas não sabia contar histórias somente para crianças, como também para os adultos.
Quando tinha necessidade de viajar já aos sábados para uma comunidade longínqua, como era o caso de Conventos, toda vizinhança costumava reunir-se depois da janta, na casa onde se hospedava, para ouvir as suas narrações.
E todas as suas histórias tinham sempre o seu fundo moral, o que, em última análise, era o que mais lhe interessava. Quando eu passava as minhas férias em casa, seguidamente o acompanhava nestas viagens a cavalo.
Naturalmente que à noite me sentia cansado e ia deitar-me cedo. Mas todas as vezes que acordava já a altas horas da noite, percebia que o tesouro de histórias do meu pai ainda não tinha esgotado.
Com o avançar de sua idade, costumava intercalar em cada prédica algumas histórias e isso constituía um ótimo meio para manter vivo e acordado o espírito dos seus ouvintes.
Nos primeiros anos costumava redigir as suas prédicas nos primeiros dias da semana para depois estudá-las.
Com o decorrer do tempo dispunha, então, de uma bolsa de couro repleta de prédicas, as quais, podia utilizar novamente depois de alguns anos.
Mas por mais que se dedicasse a uma redação primorosa de suas prédicas, não raramente tinha que observar que a atenção de certos frequentadores da igreja ia diminuindo.
Recordo-me ainda – como se isto tivesse acontecido ontem – que ele, então, bruscamente interrompia a sua prédica e advertia em voz alta: “Donas de casa, nada de dormir!” Seguia-se, então, um sobressalto do público e já a atenção estava restabelecida.
Para a nossa mãe, semelhantes animações sempre lhe eram bastante desagradáveis, mas não conseguia tirar-lhe esta sua mania.
Um belo dia teve ela que ouvir até a seguinte observação: “Vejo aí uma dona de casa que durante toda a prédica está a estudar o enfeite na cabeça de sua vizinha.
Não seria mais prático que lho deixasse mostrar depois do culto religioso?”
A 15 de julho de 1923 faleceu em Alto Feliz (Estado do Rio Grande do Sul, Brasil), com a idade de 81 anos, o Pastor Heinrich Eduard Falk, depois de meio século de uma abençoada atividade como pastor do culto evangélico e de professor.
Pela sua grande filantropia, seu pronunciado entendimento do dever e muitas outras elevadas qualidades do seu caráter, bem merece ele que a posteridade venha a saber de certos pormenores de sua vida, mormente os seus muitos velhos amigos e admiradores.
Sempre desejávamos e esperávamos que o nosso pai relatasse ele mesmo a sua vida tão multilateral, para o bem dos seus próximos, mas sempre nos fazia esperar pela época de sua esperada aposentadoria.
Quando afinal entrou em gozo desta aposentadoria, já com a idade de 76 anos, naturalmente que já era tarde demais para isso.
Contudo ainda gostava de contar certas passagens de sua vida, mas como soe acontecer por parte de pessoas idosas, ocupavam as recordações mais antigas sempre o proscênio de sua imaginação.
Assim, não mais lhe teria sido possível compilar um relato coerente.
Também não desejávamos estafá-lo com semelhante trabalho, e por este motivo, nos alegrávamos em vê-lo aproveitar o seu confortável e tão merecido descanso.
Vou tentar, como seu filho mais velho, dar um pequeno relato de sua vida. Nisto tenho que confiar-me completamente na minha memória.
Tenho principalmente em mente certas passagens dos primeiros anos de sua atividade, da época em que as chamadas “colônias alemãs” (núcleos de colonos alemães ou de origem alemã) encontravam-se em formação, com um desenvolvimento ainda muito precário das comunidades e escolas.
Nascido em Reval (Estônia), o nosso pai frequentou primeiro a escola alemã local, para ingressar aos 15 anos na oficina mecânica de um tio.
Mas já depois de um ano sentiu saudades dos livros e matriculou-se no seminário alemão, onde mais tarde prestou os seus exames de professor.
Em seguida esteve ativo, durante algum tempo, em um grande estabelecimento de educação para órfãos, abandonados e surdo-mudos.
Mas o critério que lá predominava não condizia com o seu caráter.
Efetivamente, naquela época, eram ainda a vara e outros castigos corporais que regiam as escolas e os educandários, principalmente em um país como a Rússia, em que se julgava não se poder viver sem o chicote.
Quantas vezes nos contou o nosso pai que as escolas tinham que assistir os açoitamentos públicos (espancamento por açoites) dos criminosos e quiçá também de uns tantos inocentes, antes que estes fossem enviados para a Sibéria.
Aos poucos foi tomando forma o seu plano de tornar-se missionário. Dos seus escassos apontamentos podemo-nos inteirar do grande júbilo que lhe causou o assentimento da Missão de Barmen (Alemanha) em aceitá-lo.
Deixou, pois, a terra natal e a casa paterna, para preparar-se para a profissão escolhida em Barmen, na célebre “Casa das Missões”.
É de notar, porém, que ainda um outro motivo o induziu a deixar a sua terra natal. Ele, cujos sentimentos sempre foram de alemão, teve que assistir ao cada vez mais crescente predomínio russo nas províncias bálticas; procuravam os russos reprimir o mais possível qualquer sentimento alemão e nisto estavam sendo bem sucedidos.
A sua própria irmão contraíra núpcias com um funcionário público russo e o seu único irmão tornara-se médico militar russo. (Nota do tradutor: As antigas províncias russas Estônia, Letônia e Lituânia, chamadas também províncias do báltico, pertenciam antigamente à esfera cultural da Alemanha, segundo um tratado feito entre Pedro o Grande e a nobreza da Alemanha.
Tornaram-se países independentes depois da primeira guerra mundial, em 1918, mas foram novamente anexadas pela Rússia soviética durante a segunda guerra mundial.
Constatei, posteriormente, que o meu avô tinha duas irmãs e um irmão. A que se casou com um funcionário russo chamava-se Luise. O nome da segunda irmã era Otilie.
O seu irmão faleceu em consequência de uma infecção do braço, provocado por um ferimento que ele mesmo se produziu durante uma intervenção cirúrgica em um paciente seu.)
Bem disposto, mudou-se ele no ano de 1864 para Barmen.
Dos seus apontamentos deduzimos que a sua viagem de vapor de Riga para Luebeck (porto da Alemanha) levou 5 dias.